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Crônica

Por Octavio Aragão

25 de novembro de 2011

Ética, estética, estática

“Mesmo quando suas regras mudam e inovações se produzem, mesmo quando suas disfunções, como as greves, as crises, o desemprego ou as revoluções políticas podem fazer acreditar numa alternativa, não se trata senão de rearranjos internos e seu resultado só pode ser a melhoria da ‘vida’ do sistema, sendo a entropia a única alternativa a este aperfeiçoamento das performances, isto é, o declínio.”
Jean-François Lyotard

Existem algumas pessoas que conseguem inverter o sentido da máxima “faça o que digo, não o que faço”. Talvez Frank Miller, um dos quadrinistas norte-americanos mais influentes dos últimos vinte anos, pertença a esse seleto time de perversores frasais. Miller foi projetado ao estrelato com sua reinvenção do Batman, transformando o tão ridicularizado vigilante neogótico com claras tendências pedófilas em um morcego monumental, que não pensava duas vezes em desferir ataques terroristas contra o stablishment representado por um presidente decrépito cuja cara era a de um Ronald Reagan mumificado.

Esse novo Batman virou moda nos anos 80 e foi interpretado como uma revolução, uma volta às origens radicais do personagem, longe do bom-mocismo conformado dos anos 50 e pronto para bater onde mais doía. Leitores de esquerda fecharam os olhos para os relances protofascistas que pipocavam entre quadros e preferiram enxergar apenas a guerra perpretada contra os políticos e militares corruptos. Qual o problema se alguns direitos humanos estavam sendo quebrados (junto com pernas, braços e cabeças) no processo?

Afinal, diriam os mais cínicos, é impossível fazer omelete sem quebrar ovos e, cá entre nós, chega de meliantes descansando no bembom dos seios pátrios, ou mátrios, sei lá. Não se faz revolução sem algumas perdas aceitáveis, não é?

Não, parece que não é. Porque quando Miller soltou impropérios descabelados em seu blog contra a garotada que tomou as ruas impedindo o trânsito em Wall Street, chamando-os de mimados e irresponsáveis, entre outros adjetivos menos publicáveis, muitas das pessoas que idolatravam seus trabalhos - que incluem as HQs Give me Liberty, que, como o nome diz, tem um viés libertário, e 300, uma releitura criptofascista da batalha de Termópilas, que transforma os antigos espartanos em heróis com pinta de nazistas – desceu o malho como se ele fosse o último representante de Mussolini na Terra.

Finalmente o lado extrema-direita de Miller ficou claro para todo mundo, mas o curioso é que ele jamais escondeu suas afiliações. O que fazia com que ninguém enxergasse o óbvio? Talvez o fascínio das saídas fáceis sugeridas pelo discurso “bandido bom é bandido morto (ou aleijado de sete maneiras diferentes, como propõe o Batman de Miller)”. Nada mais sedutor em tempos de incerteza do que afirmações contundentes, frases de efeito que prometem soluções imediatas contra a violência, a corrupção e os bandidos em geral. E, convenhamos, frases de efeito são o território de Miller. Ele é muito bom na estética hard boiled.

Enquanto as frases se limitam a uma catarse em quadrinhos, tudo bem. O problema é quando elas são proferidas contra movimentos que refletem a insatisfação com as instituições financeiras da única potência do planeta. Aí a ética soa questionável, reacionária e sem o charme da literatura policial, desconstruindo o ídolo em camadas de preconceito e miopia ideológica.

Porém, um detalhe me causa certo desconforto, como se uma estática atrapalhasse a transmissão das ideias. Será que os manifestos, as revoluções ideológicas e movimentos de caráter modernista ainda têm as mesmas características daqueles que reformataram o mundo nos séculos 18, 19 e 20? Ou funcionam apenas como interregnos entre duas fases de aperfeiçoamento do mesmo sistema contra o qual os manifestantes se rebelam?Há muito que movimentos de contracultura pop são absorvidos com a mesma velocidade com a qual surgem – hippie, mod, rocker, punk, new wave, new romantics, hip-hop, rap, funk... – e seus discursos, por mais contundentes que sejam a princípio, são fagocitados pela moda, pelos meios de comunicação, pelos inimigos contra os quais surgiram a princípio, contribuindo para o aperfeiçoamento dos adversários, que saem cada vez mais fortes de cada confronto, cada “revolução”.

Talvez Frank Miller seja de direita. Talvez seja esquizofrênico. Talvez seja as duas coisas. Queria eu que o mundo fosse tão simples, tão mocinho contra bandido. A tomada de Wall Street é um movimento digno e bem intencionado, merece nosso respeito, mas não me espantaria se isso fosse apenas mais um degrau no processo evolutivo do sistema capitalista em sua eterna luta contra a entropia.
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